– Esta matéria traz dois contextos. Um, sobre os indicadores da desumanizante concentração de renda e seus efeitos catastróficos na vida das pessoas, perpassando pela postura dos gestores públicos frente ao tema e a decisão de uma jovem, que aos 29 anos, decidiu doar sua herança estimada em 22 bilhões de reais, por compreender que a fortuna não a fará feliz, por nada ter feito para tê-la –
DA REDAÇÃO I Cultura&Realidade, Por João Gonçalves
Ao acessar minhas páginas de rotina domingueira, leio, em uma delas, relatórios que expõem os danos da excludente concentração de renda, no momento presente, a qual se acentua a cada ano, com elevação dantesca durante o ciclo pandêmico, aumentando as desigualdades sociais, fruto de um modelo que reduz o número de afortunados e se amplia a legião de miseráveis famintos em todo o mundo. Em outra, li a notícia de que uma jovem herdeira do agronegócio resolveu doar 90% da fortuna da família.
Esta matéria traz indicadores resultantes do comportamento daqueles que optam pela opulência patrocinada pela concentração patrimonial e a decisão de uma neta que se diz sufocada pela tragédia social que aumenta a fome e a violência no mundo.
Conforme texto integral a seguir, de Jefferson Nascimento, Coordenador de Pesquisa e Incidência em Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil, “quando a pandemia de covid-19 atingiu os brasileiros, cresceu a crise social, econômica e sanitária, pois o país estava vulnerável em diferentes dimensões, cenário que vem se agravando desde 2015 e interrompeu a tendência de redução da desigualdade de renda, verificada desde o início do ano 2000.
Em 2018, a renda das mulheres diminuiu em relação à dos homens, um fato inédito no século XXI, ao lado de quase uma década de estagnação da proporção da renda média da população negra brasileira em relação aos brancos.
Com o posterior declínio nos indicadores socioeconômicos e a adoção de medidas de austeridade que restringiram os investimentos em políticas públicas sociais, esse cenário se agravou ainda mais, com aumento do desemprego e interrupção de políticas públicas como a política de aumento do valor real do Salário Mínimo.
Desemprego e perda de renda
A pandemia de Covid-19 acelerou o agravamento da crise social e econômica no Brasil. De abril de 2020 a abril de 2021, estima-se que a cada hora (60 minutos) 377 brasileiros perderam o emprego; no pior momento da crise, quase 1.400 brasileiros foram demitidos por hora e o Brasil registrou recorde de 14,4 milhões de desempregados em abril de 2021. Quase 600 mil empresas faliram, prejudicando sobremaneira os indicadores de emprego no país. Os programas destinados a garantir o emprego foram mal implementados e promoveram condições de trabalho precárias para jovens e grupos vulneráveis.
No terceiro trimestre de 2021, o desemprego caiu para 13,5 milhões de brasileiros, devido ao aumento da informalidade e empregos precários, porém a taxa de desemprego entre os negros ainda é maior do que entre os brancos, contribuindo para maior desigualdade de renda. No Brasil, as mulheres ocupam mais empregos informais do que os homens, portanto, a perda de renda entre as mulheres foi maior durante a pandemia, causando efeitos colaterais de aumento do isolamento e maior exposição à violência doméstica. Estudo mostra que uma em cada quatro mulheres brasileiras foi vítima de violência durante a pandemia.
Epicentro da fome
A fome disparou durante a pandemia. Em dezembro de 2020, 55% da população brasileira estava em situação de insegurança alimentar (116,8 milhões, equivalente à população conjunta da Alemanha e Canadá) e 9% passavam fome (19,1 milhões, superior à população da Holanda). Isso representa um retrocesso aos patamares verificados em 2004.
O vírus da fome afeta mais as mulheres e os negros no Brasil – 11,1% dos domicílios chefiados por mulheres e 10,7% dos domicílios liderados por negros passavam fome no final de 2020, em comparação com 7,7% dos domicílios chefiados por homens e 7,5% das famílias encabeçadas por brancos.
O papel dos programas de transferência de renda
Medidas emergenciais foram adotadas para mitigar os impactos da pandemia no Brasil. Destaque para o Auxílio Emergencial, programa de transferência de renda estabelecido a partir da mobilização da sociedade civil e do Congresso Nacional brasileiro, cuja cobertura atingiu 67 milhões de brasileiros (31% da população do Brasil) com investimento público de R$ 322 bilhões (US$ 58,4). bilhões), o que corresponde a 4% do PIB brasileiro. O Auxílio Emergencial contribuiu para a redução do índice de pobreza do Brasil de 11% no final de 2019 para 4,5% em agosto de 2020, mas, entre abril e dezembro de 2021, o benefício foi reduzido e está sendo assegurado para pouco mais de 50% dos beneficiários de 2020, dificultando sua atuação como barreira contra a fome e a pobreza. Pelo menos outros 20 milhões serão excluídos dos programas de transferência de renda em 2022.
Criado em 2003, o Bolsa Família, programa de transferência de renda reconhecido internacionalmente, foi extinto em novembro de 2021. Seu substituto – o Auxílio Brasil, com vida útil apenas até dezembro – desmonta quase duas décadas de uma política bem-sucedida de combate à pobreza em um momento em que ela é mais necessária. Milhares de famílias vulneráveis estão mal atendidas durante o período de transição entre os programas.
Desigualdade no acesso à saúde
Após mais de 600 mil mortes, o acesso desigual aos serviços de saúde deixou cicatrizes nos mais vulneráveis do Brasil. Estudos de 2020 apontam a desigualdade como fator para o avanço do coronavírus nas periferias, aumentando em até 50% o risco de morte por Covid-19. Mesmo com a vacinação no Brasil, resultado da importância do Sistema Único de Saúde – SUS, a maioria das mortes por covid-19 está concentrada nas periferias das grandes cidades, em decorrência do acesso desigual às vacinas, entre outros. Segundo a OCDE, negros tem 1,5 vezes mais chances de morrer de Covid-19 do que brancos no Brasil.
O regresso das políticas de austeridade
Após a existência de um modelo orçamentário excepcional – permitindo a aprovação do programa Auxílio Emergencial em 2020 – o discurso pró-austeridade voltou a todo vapor em 2021. Como resultado, foram aprovados diversos cortes orçamentários em áreas-chave para o enfrentamento da pandemia de Covid-19, como ciência e tecnologia, saúde e educação. Até o orçamento para as vacinas contra a covid-19 foi reduzido em 8,5% na previsão orçamentária de 2022. As políticas de austeridade estão sendo aplicadas apesar do consenso internacional sobre a recuperação pós-pandemia, sob o falso discurso de que o cenário fiscal brasileiro exige austeridade.
O “remédio” contra a epidemia de desigualdade
Uma solução possível – uma reforma tributária justa – não é prioridade para os tomadores de decisão. Uma oportunidade perdida: segundo pesquisa da Oxfam Brasil, 84% dos brasileiros concordam em aumentar os impostos dos mais ricos para financiar políticas sociais; 56% estão de acordo com o aumento de impostos para todos como forma de apoiar as políticas públicas.
Os brasileiros também apoiam o forte e decisivo papel do Estado como provedor de políticas públicas. 86% acreditam que o progresso do Brasil está condicionado à redução da desigualdade entre pobres e ricos, enquanto 85% concordam que é obrigação dos governos reduzir a distância entre muito ricos e muito pobres.
Esses são os “remédios” que precisamos para enfrentar a epidemia de desigualdade no Brasil”, assevera Jefferson em seu relatório, que foi divulgado no início deste ano.
Jovem intriga mundo ao doar R$ 22 bilhões
Não deveria, mas a decisão de Marlene Engelhorn, de 29 anos, chocou o mundo quando anunciou que vai doar 90% da sua herança, estimada em R$ 22 bilhões. Estudante de língua e literatura alemã na Universidade de Viena, na Áustria, a jovem é herdeira da BASF, gigante alemã do setor químico, uma das maiores empresas do agronegócio do mundo.
Em entrevista, Marlene Engelhorn, que faz parte do movimento ‘Tax me now’, formado por outros herdeiros que defendem a taxação de grandes fortunas, disse que a decisão não era “uma questão de vontade, mas de justiça”.
“Nas nossas sociedades, a riqueza individual está estruturalmente ligada à pobreza coletiva”, disse a herdeira.
Doação da herança
A avó de Marlene, Traudl Engelhorn-Vechiatto, 95 anos, havia anunciado o desejo de deixar a fortuna para Marlene. Segundo a neta, a avó “deu uma liberdade enorme de fazer o que quisesse”.
Marlene receberá o dinheiro depois da morte da avó. Ela nunca trabalhou na empresa fundada pela família. A estudante afirma que o dinheiro não lhe fará feliz, pois “não fez nada” para receber o valor.
Mesmo com a doação, Marlene Engelhorn não deverá perder sua zona de conforto. Vai continuar com uma herança de R$ 2 bilhões. Nada mal.
Fontes: Oxfam Brasil e Canal Rural