– As conexões entre fé e ciência… uma provocação que o articulista Arlicélio Paiva faz neste novo texto. Vale a leitura, sempre rica de significados deste especial colaborador do Cultura&Realidade (A Redação) –
ARTIGO I Cultura&Realidade, por Arlicélio Paiva*
Sr. Epitácio Bezerra, mais conhecido como seu Tacim, era o único dono de farmácia do pacato município de Velame do São Francisco, que fica no sertão da Bahia, na região de Juazeiro. Homem muito simples e de boa reputação, havia prolongado a vida de muitas pessoas, a maioria formada por crianças que morriam em consequência de disenteria. Mesmo morando em um lugar distante de quase tudo, seu Tacim fazia questão de manter o seu único filho bem-informado para os padrões da época. Para isso, ele proporcionava para Aristóteles, um garoto de 10 anos de idade, chamado carinhosamente por Tote, a leitura das revistas Manchete e O Cruzeiro, como também, de alguns jornais da capital. Com isso, o menino tinha noções dos acontecimentos que estavam ocorrendo no mundo.
Vendo o seu pai atender na farmácia, Tote aprendeu a fazer indicação de medicamentos para casos mais simples. Certa feita, seu pai saiu para a roça e ele ficou tomando conta da farmácia sozinho. Um menino da mesma idade que a dele, chegou com um bilhete da mãe, dona Neide. No escrito, havia um pedido para que seu Tacim indicasse um remédio para sua mãe, uma senhora idosa, que estava muito gripada. Tote abriu uma das gavetas do balcão da farmácia e pegou algumas cartelas de comprimidos de Apracur, como o seu pai sempre fazia para aquele caso, e ensinou ao menino o modo correto de tomar o medicamento.
Na semana seguinte, dona Neide apareceu na farmácia para pagar o remédio e não poupou elogios a seu Tacim. Ao verificar as anotações na caderneta de fiado, seu Tacim viu que o atendimento tinha sido feito por Tote. Portanto, a indicação do remédio fora realizada pelo menino, não, por ele. A partir daquele dia, com todo exagero que lhe era peculiar, dona Neide falava para todos os velamenses que seu Tacim já tinha um discípulo, de tal forma que o menino de 10 anos de idade, estava tão bom quanto o pai para ajudar aos doentes.
Desesperado para salvar seu filho, seu Tacim procurou o deputado estadual de Juazeiro, Ladislau Rebouças, para que ele pudesse lhe ajudar no tratamento do menino. Ele lhe deu garantias que iria cuidar do caso com muito interesse. No mês seguinte, um preposto do deputado procurou seu Tacim para lhe informar que estava tudo certo para o menino ser levado para a capital, sem custos médico-hospitalares para a família.
Ao chegar à capital, outro preposto do deputado Ladislau Rebouças foi buscá-los na rodoviária e os levou até a hospedaria na Baixa do Sapateiro. No período da tarde, o deputado, em pessoa, acompanhou pai e filho até o hospital público para uma avaliação pré-operatória. De imediato, o médico concluiu que era um caso para cirurgia. No decorrer da semana, enquanto faziam os exames laboratoriais, seu Tacim aproveitou o tempo livre para apresentar os principais pontos turísticos da capital para Tote. Boa parte deles, o menino já conhecia por intermédio das leituras. Ele ficava encantado com tudo que via. Porém, nenhum visual causou mais arrebatamento do que o encontro com o mar, em Ondina. Aliás, para um garoto que nunca tinha assistido a uma televisão, o simples fato de ficar em uma hospedaria com luz elétrica e TV já era um grande feito. Ele assistia atentamente ao telejornal da TV Aratu e ficava entusiasmado ao ver reportagens sobre a Irmã Dulce, conhecida por ele, por intermédio das leituras.
No dia anterior à cirurgia, ocorreu a última consulta com o médico que iria operá-lo. Todos os exames foram favoráveis para que a operação ocorresse normalmente. No decorrer da consulta, o médico foi interrompido por uma pessoa que anunciou a chegada de Irmã Dulce ao hospital. Com a porta do consultório aberta, o menino ficou paralisado ao ver a freira conversando com o médico. Tote não conseguia desviar os olhos da Irmã e, em um determinado momento, ela olhou para ele e o cumprimentou, acenando com a cabeça, discretamente. De imediato, o menino se lembrou da história da freia que ele já tinha conhecido pela leitura de revistas e jornais, em Velame e pela TV, na capital. Até então, nem o pai, nem o filho sabiam que a operação ocorreria no hospital mantido pela Irmã Dulce.
Ao se despedirem do médico que iria operar o menino na manhã seguinte, pai e filho foram passear na região do Elevador Lacerda e do Pelourinho. Naquela altura, a tensão da cirurgia já havia diminuído, pois o conhecimento de que seria operado no Hospital de Irmã Dulce, deu segurança a ambos. No decorrer do passeio, Tote pediu um sorvete ao seu pai que o atendeu de bom gosto. No final da tarde, os dois já estavam cansados e voltaram de táxi para a hospedaria.
No meio da noite, seu Tacim acordou assustado com os gemidos de Tote. Ao tocar no menino, o pai observou que ele estava queimando de febre e viu que também estava com a garganta bastante inflamada. Com noite mal dormida, seu Tacim levou o filho em jejum ao hospital logo cedo, conforme o médico havia solicitado. Ao verificar a situação em que o menino se encontrava, o médico avisou a seu Tacim que não seria possível fazer a cirurgia do seu filho enquanto ele estivesse doente. Receitou Complexo B com vitamina C e aconselhou que eles retornassem para o interior até que o menino estivesse melhor. Garantiu que eles não precisavam mais marcar a operação com antecedência, bastava chegar ao hospital para uma consulta, que a cirurgia seria feita no dia seguinte.
Assim que chegou em Velame, seu Tacim se envolveu com as tarefas diárias e Tote estava ansioso para contar aos seus amigos tudo que acontecera na capital. Na semana seguinte, o menino já estava bem e pôde voltar para a escola. Seu Tacim resolveu esperar pela colheita do milho na roça para arrumar dinheiro a fim de retornar para a capital. O tempo foi passando e o menino começou a ganhar peso e ficar mais corado e a cirurgia acabou caindo no esquecimento. Tote ficou adulto e nunca mais teve qualquer problema de garganta.
Adulto feito e já estudando na faculdade em Juazeiro, Tote foi à rodoviária para comprar passagem para Salvador. Naquela época, os preços mudavam da noite para o dia. Na fila do guichê, havia um senhor que tinha levado o dinheiro contado para comprar uma passagem, mas a quantia não foi suficiente em função da mudança de preço. Para que o homem não tivesse que voltar para casa a fim de pegar o dinheiro que faltava, Tote se ofereceu para pagar a diferença. O homem aceitou sem maior resistência e eles iniciaram uma conversa:
– De onde você é, meu jovem?
– Sou de Velame.
– Eu tenho um amigo que mora lá, o nome dele é Tacim, você o conhece?
– É meu pai! Qual o nome do senhor?
– Eu me chamo Johnson Rodrigues. Que fim levou um irmão seu que era muito doente?
– Sou eu!
– O quê?! Você escapou?! Deve ter sido por um milagre.
O dr. Johnson Rodrigues abraçou Tote e ambos deram muitas risadas, lembrando-se das constantes visitas do menino ao seu consultório.
Depois que a Irmã Dulce foi santificada, Tote ficou imaginando se a sua cura foi um milagre da atual Santa Dulce dos Pobres ou se foi um fortalecimento do organismo com o passar do tempo, que produziu anticorpos para debelar a doença. O fato é que, de garganta, Tote ficou curado.