– Na entrevista, o professor explica a metodologia adotada para a concretização da obra “O que farpa o boi farpa o homem: memórias de vaqueiros e a modernização agrária do Sertão Norte Diamantino (1943-1985)”, as influências e os impactos que a modernização da agricultura e pecuária promoveram na vida das famílias do campo, em especial à profissão de vaqueiro raiz, cuja relação com os donos de terras é bem diferente da constante no imaginário das pessoas que não viveram a época –
DA REDAÇÃO I Cultura&Realidade
Ler a obra “O que farpa o boi farpa o homem: memórias de vaqueiros e a modernização agrária do Sertão Norte Diamantino (1943-1985)”, do Mestre Alécio Gama, é fazer uma viagem no tempo. É sentir a dura realidade dos sertanejos raízes, que viveram a era do couro no sertão, especialmente as fases finais do ciclo.
Com a obra, é possível conhecer a relação dos vaqueiros com os donos do gado, os impactos da evolução socioeconômica na região estudada e os diferentes cenários estabelecidos pelos acontecimentos, espontâneos e provocados pelas relações entre os donos de terras, o estado e o sistema financeiro com os pacotes econômicos para as atividades rurais.
Natural do município de Jussara, Alécio Gama é licenciado e mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), docente a 16 anos, especialista em Tendências e metodologias para o Ensino de História e Geografia pela Pitágoras e Unopar. Atualmente é professor efetivo da Rede Estadual de Ensino da Bahia.
Na entrevista que segue, Alécio fala sobre a obra e as influências das suas origens neste trabalho de pesquisa. Filho de agricultor, ele vivenciou de perto as relações que ocorrem entre quem faz a terra produzir, os processos de comercialização e os critérios bancários desta relação.
Cultura e Realidade: o que o leitor de “O que farpa o boi farpa o homem: memórias de vaqueiros e a modernização agrária do Sertão Norte Diamantino (1943-1985)” poderá ter com esta obra, fruto de pesquisa que você desenvolveu?
Alécio Gama: Bem, esta obra é o resultado da minha pesquisa de mestrado, concluída em 2012. Ela aborda os impactos da modernização agrária, aquilo que ficou conhecido entre nós como o “tempo do feijão”, sobre as comunidades tradicionais do Sertão Norte Diamantino, hoje chamado Território de Identidade de Irecê, especialmente as transformações impostas ao trabalho dos vaqueiros de campo, sujeitos icônicos do nosso sertão que cuidavam do gado em meio as caatingas.
A obra foi organizada em seis capítulos que apresentam sequencialmente a formação histórica do Sertão Norte Diamantino no contexto do interior baiano; o mundo do trabalho dos vaqueiros de campo, suas rotinas e simbologias costumeiras; o projeto de modernização agrário implantado na segunda metade do século XX sobre o Sertão Norte Diamantino que resultou na criação de um espaço agromercantil sobre regência do capital denominado “Região de Irecê”; as estratégias dos vaqueiros de campo para se manterem em suas funções diante do avançado desmatamento da caatinga, do cercamento das terras com arame farpado e da extinção do uso comum das áreas de campo e, por fim, a memória coletiva dos vaqueiros, entendida como instrumento atual de resistência contra o apagamento que a versão oficial da história do nosso território produz.
Cultura e Realidade: Qual foi seu objetivo ao tratar desse tema, que mexe com sentimentos até mesmo de quem não viveu esta época, mas é movido pelos sentimentos de família?
Alécio Gama: Contrapor a versão oficial sobre a história do atual Território de Identidade de Irecê. Essa versão afirma a implantação da política agrária desenvolvimentista como “ato fundador”. É comum encontrarmos nos documentos, por exemplo, a afirmativa de que a partir da implantação da agricultura comercial a área onde vivemos foi “desbloqueada”, “ganhou relevância”, “superou o atraso”.
A versão oficial está presente na mentalidade popular e é, muitas vezes, reproduzida pelos escritores locais. Trata-se de uma narrativa artificial, cheia de lacunas, apresentada de forma linear e crescente, onde o modo de vida rural sertanejo, visto como uma fase primitiva da nossa história, é substituído pelo progresso do “tempo do feijão”, representado no crédito, nas máquinas como o trator e nas super safras. Ainda hoje é comum ouvirmos falar sobre a “vocação agrícola da Região de Irecê”, um discurso que difunde a ideia de que esse caminho é a realização de uma predestinação e foi repetido ao máximo durante a implantação da política agrária desenvolvimentista.
Essa narrativa, como se pode ver, além de definir de forma negativa nossas raízes sertanejas, nega qualquer importância histórica para as pessoas comuns e as comunidades tradicionais do sertão, além de omitir os reais interesses que alimentaram esse “progresso”.
Meu objetivo foi demonstrar o que estava por trás dessa narrativa, os custos sociais e ambientais escondidos sob o romantismo do “tempo do feijão”. O brilho da versão oficial se ofusca quando entendemos a forma autoritária com que foram implantadas as ações de modernização agrária, desrespeitando o modo de vida e trabalho tradicional das comunidades sertanejas; a exploração a qual foram submetidas as famílias inseridas no sistema de crédito; a forma como as classes ricas, especialmente os políticos e os intermediários da produção, se beneficiaram dos projetos implantados; as estratégias desses grupos para elevar constantemente sua margem de lucro e adquirir os produtos gerados por preços depreciados e a devastação causada em nossa caatinga pelo modelo de exploração econômico agrocomercial.
Cultura e Realidade: E a lendária e atual figura do vauqiero… Nos fale um pouco mais sobre o papel deste símbolo emblemático em sua obra.
Alécio Gama: O vaqueiro foi escolhido como sujeito de estudo por ser um trabalhador que se antagonizava à política agrícola do governo. Na obra o vaqueiro é o guia e o entendimento das mudanças ocorridas no seu mundo laboral ilustram a profundidade das mudanças operadas pelo capital em toda vida sertaneja. O vaqueiro era um dos trabalhadores mais comuns do Sertão Norte Diamantino.
Esses trabalhadores cuidavam do gado de um ou mais criadores em meio às caatingas, por eles chamadas de campo, recebendo como pagamento 1 em cada 4 animais nascidos vivos. Essa relação de trabalho, definida como sorte, garantia ao vaqueiro muita autonomia, liberdade e a possibilidade de tornar-se também um criador. Esse é um ponto importante porque a literatura e os estudos acadêmicos, até mesmo os recentes, definem o vaqueiro sempre como um sujeito do passado, muitas vezes ligado ainda ao processo de colonização do Brasil, ou um funcionário de um “patrão”, preso a uma fazenda, onde exerce sua função de forma subserviente.
Meu estudo questiona essa visão! Realizamos muitas horas de entrevista com vários vaqueiros de campo de diferentes municípios do Território de Identidade de Irecê, homens com mais de 65 anos, alguns deles ainda na ativa. Encontramos vaqueiros no presente, trabalhando em terras usadas comunitariamente, sendo que alguns deles jamais tiveram um “patrão”, ou seja, nunca foram funcionários de um criador.
Diante do avanço desse processo de exclusão, eles tentaram se manter ativos realizando serviços rápidos de deslocamento de rebanhos, captura de animais, artesanato em couro, ou mesmo migrando para outros locais com tradição pecuária como Goiás e Minas Gerais. Esses homens viveram a degradação do ofício que escolheram para suas vidas, hoje estão silenciados, são vistos como um fragmento de passado, limitados pelas forças físicas, soterrados pelo mundo tecnológico e urbano. Na mídia nacional sua originalidade foi substituída pela representação do cowboy norte americano e do peão boiadeiro do centro oeste.
Busco romper, ainda que por um instante, esse apagamento, afirmar a importância histórica e as especificidades desses sujeitos. A trajetória de vida deles é linda, emocionante e suas palavras ressaltam uma identidade sertaneja robusta que nem mesmo o tempo corroeu!
Cultura e Realidade: Que tipo de ensinamento você acha que seu livro traz para o Território de Identidade de Irecê, especialmente para os mais jovens?
Alécio Gama: Acho que um livro cumpre sua função quando desnaturaliza a realidade e nos ensina a perguntar. Minha obra demonstra como o propalado progresso do “tempo do feijão” se materializou na verdade em um projeto de exploração da riqueza e do trabalho das comunidades para benefício das classes ricas locais e nacionais. Ele demonstra como o capital se apropriou dos espaços, extraiu o trabalho, dividiu a terra, degradou a natureza e excluiu os sujeitos tradicionais, nos herdando consequências drásticas com as quais até hoje convivemos, especialmente os prejuízos ambientais e a cultura de negação de nossas raízes sertanejas. Afinal, porque a maior parte das pessoas, especialmente as mais jovens, tem uma visão tão negativa da cultura rural sertaneja? Quem nos ensinou isso? Porque desconhecemos tanto nosso lugar? Por ter surgido das mãos de um professor, não é incoerente afirmar também que a obra chama a atenção para a necessidade de tratarmos com mais seriedade a história do Território de Identidade de Irecê e incluí-la como conteúdo nas salas de aula.
Cultura e Realidade: Como tua história pessoal se cruza com teu tema de estudo?
Alécio Gama: O tema abordado no livro é o resultado da influência de diversas experiências que ocorreram em momentos diferentes de minha vida. Para começar, eu sou filho de uma família de agricultores que vivenciou essa exploração do trabalho trazida pela engrenagem do crédito. Meu pai obteve empréstimos agrícolas entre as décadas de 1980 e 1990. Eu vi muita riqueza ser produzida com muito esforço na pequena terra da família, muitas sacas de feijão, milho e mamona, mas vi também essa riqueza ser vendida a preços irrisórios aos atravessadores da cidade de Jussara e no final de um ano nos restar apenas o suficiente para se alimentar, pagar as dívidas do banco ou para replantar a propriedade.
Na década de 1990, após o período das grandes safras, eu era um garoto, mas recordo da grande crise econômica que vivemos, dos impactos da seca, da ausência de dinheiro para pagar os empréstimos pendentes no banco, da inflação, das preocupações em casa, da debandada da juventude jussarense para São Paulo por falta de oportunidades.
O ingresso na faculdade de História da Universidade Estadual de Feira de Santana, lá pelos anos 2003, além de ter me desviado da sina da migração para São Paulo, me pôs em contato com um mundo novo. Vivi em Feira de Santana por quase 10 anos e a estadia nessas terras me permitiu perceber a forma como a identidade sertaneja é valorizada em outros locais.
Conheci tradições do recôncavo e presenciei o modo como seus habitantes se orgulham de suas raízes, de sua história, exaltam suas festas. Isso pôs a questionar: porque temos uma relação tão fria e ofuscada com nossas raízes históricas e tradições na Região de Irecê? Porque o estudo sobre a história local em nossas escolas, quando existe, se resume sempre a história “heroicizada das famílias mais importantes”? O amadurecimento dessa reflexão me levou a buscar um tema de estudo aqui no território, tema esse que encontrei nos bate papos com meu pai sobre “a vida de antigamente”. Em determinado dia ele me narrou a admiração que os jovens de sua época tinham em relação aos vaqueiros e apontou os motivos que puseram fim ao ofício de campo.
Mais tarde aprofundei essas informações com meu padrinho, o saudoso Chico de Germino, que exerceu a função de vaqueiro por muitos anos. Cruzei essas informações com os estudos realizados na faculdade sobre a política agrária desenvolvimentista e compus finalmente o objeto de pesquisa. No curso de mestrado, no qual ingressei em 2010, entendi melhor essa relação e o aprofundamento dos estudos representou uma espécie de encontro comigo mesmo, com minhas raízes, com minha identidade. Sob orientação da professora Drª Elizete Silva defendi a dissertação em 2012. Em 2020 recebi um convite da Sagga Editora para publicar a dissertação em forma de livro.
Cultura e Realidade: Onde podemos comprar a obra?
Alécio Gama: Ela está disponível no site da Editora Sagga e na Amazon.
Cultura e Realidade: Suas considerações finais.
Alécio Gama: Agradeço ao Cultura e Realidade, pelo espaço que me concede para divulgar meu livro. Agradeço a professora Doutora Elizete Silva, que orientou e prefaciou a obra. A editora Sagga, pela oportunidade de publicar esse estudo e aos amigos e familiares entusiastas da obra.