– O banqueiro que mudou de lado e assessorou o MST a emitir Certificados Recebíveis do Agronegócio – CRA, para o mercado financeiro, favorecendo os investimentos da entidade em projetos produtivos –
DA REDAÇÃO I Cultura&Realidade – The Intercept
O jornalismo independente promovido pelo site The Intercept Brasil, trouxe em sua plataforma eletrônica, no último dia 10, uma excelente entrevista com o ex-banqueiro carioca Eduardo Moreira. A entrevista foi conduzida pelo jornalista Vinícius Konchinski e vale a pena conferir a leitura.
Durante a entrevista ele narra porquê mudou de lado e expõe as engrenagens do sistema econômico, que, para ele, corrói a democracia e impõe uma relação na qual os pobres emprestam para ricos e pagam mais caro no uso de empréstimos financeiros.
Eduardo relata que existe uma fortuna no Brasil à disposição do desenvolvimento, mas que estes recursos estão paralisados, atendendo aos interesses do mercado financeiro.
Utilizando dos seus conhecimentos, ele conduziu o MST a acessar recursos financeiros mais baratos que o que é ofertado pelo mercado, com recursos destinados a produzir alimentos acessíveis a quem precisa se alimentar.
Para ele, há uma legião de famintos no Brasil, enquanto o governo se preocupa em produzir para exportar. Veja um trecho da entrevista:
“Intercept – Por que o MST recorreu ao mercado financeiro para buscar recursos?
Eduardo Moreira – O MST, como qualquer um que quer empreender, precisa de recursos. E esses recursos já são obtidos no mercado financeiro. Só que são obtidos por meio de empréstimos dados por bancos a taxas absolutamente absurdas. Só a título de curiosidade: a taxa de juros mais alta cobrada hoje no Brasil é de 965% ao ano. Uma pessoa que pega R$ 10 mil emprestado nessa taxa, em cinco anos, deve R$ 1,5 bilhão. Ninguém tem noção disso! Tem gente que fala que é um contrassenso o MST pegar dinheiro no mercado financeiro. Quem fala isso não tem a menor ideia de como funciona um acampamento ou assentamento. Todo mundo que produz, seja de acampamento, agricultor familiar, seja de qualquer lugar, tem que pegar dinheiro para comprar sementes, ferramentas. Elas pegam dinheiro no mercado financeiro.
Como surgiu a ideia?
O MST, há um ano e meio, precisava pagar uma grande reforma de uma planta de produção de arroz orgânico e carne suína perto de Porto Alegre. Eles tinham resolvido ampliar a planta, mas, com o novo governo, todas as linhas de crédito público para isso foram cortadas. Faltava R$ 1,5 milhão para a reforma. Me perguntaram se eu conhecia algum banco para buscar financiamento. Eu disse: “não vão para o banco, não. Deixa eu juntar uns investidores. Em vez de o nosso dinheiro estar no banco financiando o que a gente nem sabe o que é, a gente quer começar a investir em algo que a gente acredita”.
Investimos em algo que paga uma taxa de juros muito baixa, para ganhar o equivalente ao ganho da poupança, mas que financia a agricultura orgânica, que ajuda famílias a desenvolver uma agricultura familiar, a produzir alimentos que não sejam para exportação, mas para alimentar uma população que passa fome. Fizemos um CRA, certificado de recebíveis do agronegócio, um título de dívida, e uma securitizadora padronizou esse título para ele poder ser comercializado. Primeiro, o MST, na verdade, pegou dinheiro emprestado comigo e outros seis investidores. Fizemos o CRA já para fazer um projeto piloto. Queríamos que esses títulos padronizados, de mercado, levassem dinheiro para as pessoas que não são atendidas pelo mercado financeiro.”
O jornalista Vinicius provoca Eduardo a apresentar mais detalhes:
“A ideia de criar um título da dívida do MST foi testar o modelo em outras operações?
Sim. Inauguramos no Brasil o conceito de financiar o mundo que acreditamos. Depois da primeira operação, tínhamos um novo desafio: fazer com que todo mundo pudesse fazer isso. A primeira operação, para poder sair rapidamente, foi para investidor qualificado, que tem pelo menos R$ 1 milhão em investimentos. E eles, em tese, estão mais acostumados com risco, e não vão ser destruídos se perderem dinheiro com esse investimento. Há menos exigências da CVM [Comissão de Valores Mobiliários].
Mas queríamos o Brasil inteiro fazendo isso. Resolvemos então fazer uma segunda operação disponível para o pequeno investidor. Há uma instrução da CVM que exige uma infinidade de informações, de licenças, de alvarás, para mostrar que todas as atividades que serão financiadas são 100% legais e regulares, para proteger o pequeno investidor. Foi feito um documento de mais de 600 páginas que quebrou todo um argumento de que o MST é um banco de terroristas. Passou-se pelo maior de todos os crivos. Aí fizemos essa segunda emissão, aberta para todo mundo. Perguntamos: “quem topa investir, sabendo que vai receber menos financeiramente, mas vai receber mais em retorno para o mundo?”
Houve resistência do mercado a essa ideia?
Muito repórter perguntava: “mas essa operação tem um retorno menor. E aí?”. Eu digo sempre: tem um retorno financeiro menor, mas retorno é algo muito além da taxa de juros. Adianta comprar um arroz que desmata, que faz propaganda antivacina, que tem milícia de fazendeiro, que exporta para outro país e pagar R$ 0,10 a menos? O que é retorno? O que volta do investimento? Essa operação tem um retorno inédito. Essa operação foi pequena, de R$ 17,5 milhões, mas deu retorno a 13 mil pessoas do MST.
Quantas pessoas compraram o título da dívida para financiar o MST?
Os títulos foram divididos entre dois tipos de investidores. Um comprou R$ 3 milhões em cotas subordinadas e outros puderam comprar R$ 14,5 milhões em cotas seniores. O que é uma cota subordinada e uma cota sênior? Suponhamos que 10 pessoas emprestem R$ 100 cada para um indivíduo que precisava de R$ 1 mil. Se essa pessoa devolve só R$ 500, cada um que emprestou deveria receber R$ 50, certo? Mas, se entre essas 10 pessoas, você tiver cinco que comprem uma cota subordinada e cinco que fiquem com a cota sênior, antes de impactar a cota sênior, você come toda a cota subordinada. Se o indivíduo deixar de pagar R$ 500, quem tem cota subordinada perde tudo e todo mundo com cota sênior recebe. É uma proteção.
Nesta operação do MST, se você tivesse uma inadimplência de R$ 3 milhões, o pequeno investidor não perdia nada. Cinco mil pessoas abriram conta na corretora para investir nessas cotas, e 1,5 mil conseguiram efetivamente investir [média de R$ 9 mil por investidor efetivo], porque só havia R$ 14,5 milhões disponíveis para serem vendidos. Isso é incrível. Uma operação ligada ao MST, sem propaganda, com uma taxa de 5,5% ao ano, quando o governo já tomava empréstimos a 11%. É histórico no mundo. Uma cooperativa captar dinheiro por cinco anos numa taxa que é metade da taxa livre de risco no país, que é a taxa da emissão da República. E isso poderia ser feito com cooperativas de pescadores, de artesãos, pode ser geograficamente estabelecido, ou seja, investido na cidade ou comunidade delas.
Como isso poderia ser ampliado?
Hoje, no Brasil, existem cerca de R$ 4 trilhões investidos em fundos, poupanças, etc. Se tivermos 5% desse valor, teremos R$ 200 bilhões para financiar produção sustentável. Isso não é doação, não. Tem retorno. Se isso fosse uma política de estado, se tivéssemos o governo investindo na cota subordinada, teríamos muito recurso para investimento a custo zero do orçamento. Isso não é gasto. O governo vai receber de volta.
Tem quase R$ 5 trilhões nos bancos que poderiam ser usados para tudo que é necessário no Brasil. Isso não acontece, porque quem decide o que fazer com esse dinheiro são os bancos. Eles que escolhem emprestar para as mesmas famílias, os mesmos latifundiários –até porque os bancos, muitas vezes, são sócios desses negócios todos. Quando você tira esse poder dos bancos, você destrava a economia e tem um ganho enorme até em democracia, pois há uma distribuição de poder. O poder de escolha de onde a riqueza do país será empenhada é um poder democrático, que afeta diretamente os rumos do país.
O governo decide fazer um programa para incentivar a indústria tecnológica, mas tem R$ 3 milhões para emprestar. Peraí, não tem dinheiro no país? Claro que tem. Tem R$ 5 trilhões. As pessoas não poderiam financiar esse programa? Poderiam, mas os bancos não deixam. Eles querem essa procuração para votar no país que eles precisam.
A operação do MST foi um grande sacolejo. Gerou um monte de críticas. Tentaram boicotar. Por que essa preocupação? Porque ela foi um golpe frontal na estrutura do sistema financeiro brasileiro, que, na minha opinião, é quem mais corrói e corrompe a democracia e economia brasileira. É o maior câncer do Brasil. Quem mais alimenta desigualdade e privilégios é o sistema financeiro.”
Segue o link da entrevista completa, diretamente do sítio do The Intercept Brasil, onde se pode acessar contatos para possíveis contribuições para a consolidação do jornalismo independente e investigativo no Brasil